A bailarina que sobreviveu
Livro: “A Bailarina de Auschwitz”, de Edith Eva Eger
Já tinha visto “A Bailarina de Auschwitz” na estante de livrarias diversas vezes. Não sabia nada sobre seu conteúdo, apenas deduzia o óbvio: uma bailarina num campo de extermínio nazista. Achava que era um livro de ficção, um sofrido, triste e com alguma mensagem importante no final.
Me enganei. Quando enfim o comprei e comecei a leitura, descobri que se tratava de uma autobiografia. Fiquei imediatamente mais interessada: era a história real de uma sobrevivente – que era bailarina.
Quando terminei de ler, o impacto foi muito maior do que eu poderia esperar.
Prefácio
A grande primeira impressão já acontece no prefácio, escrito por Philip Zimbardo, psicólogo e professor emérito da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Quando eu estava no primeiro ano da faculdade de Direito, li sobre seu famoso experimento, o chamado Aprisionamento de Stanford.
Como ele mesmo explica no texto, seus estudos focavam na influência negativa do meio social sobre o indivíduo. Dessa forma, apenas com uma ação de heroísmo haveria resistência, de luta pela paz e pela justiça.
Porém, segundo ele, Edith Eva Eger o fez perceber que o heroísmo não significa realizar algo extraordinário ou arriscado. Com Eger, ele entendeu que o heroísmo é “um jeito especial de ver a si mesmo“.
O livro já teve minha absoluta atenção a partir desse ponto. O que é esse jeito especial? Além disso, quem é essa autora capaz de mudar a opinião e ter o respeito desse renomado psicólogo?
Na introdução do livro, ele descreve a autora como uma pessoa que exala “pura luz”. Zimbardo relata o enorme poder de cura de Eger, o que, nas palavras dele, é resultado dos diversos episódios traumáticos que ela sofreu.
Nessa passagem, deduzi que ele se referia à experiência dela em Auschwitz. Isso, porém, é apenas parte da história. Mais à frente, descobri que Eger passou por diversas dificuldades, mesmo depois dos campos de concentração. Sua história é repleta de atos de coragem. Segui a leitura com grande curiosidade.
O conteúdo
Depois que descobri que o livro era uma autobiografia, já não sabia bem o que esperar do conteúdo do livro. Talvez uma longa narrativa sobre as torturas de Auschwitz. Talvez uma visão pessoal e detalhada sobre o impacto do nazismo. Eu não tinha ideia. Aí, mesmo sem saber ao certo o que imaginar, o livro me surpreendeu mais uma vez.
Não é uma história de ficção, mas poderia ser. A autora nos convida a imergir em suas memórias e (re)vivê-las. De repente, nós somos Edith Eva Eger, e enxergamos o mundo através de seus olhos.
A bailarina
Irmã mais nova de três filhas, Edith era uma menina que se sentia invisível. Sofria com sua aparência e ansiava pela atenção e o amor dos pais. As irmãs ganhavam destaque: Magda pela beleza, Klara pelo talento na música. Edith era apenas a confidente, não exprimia seus sentimentos, mas acumulava dos demais. Somado a isso, pertencer a uma família judia numa época em que o antissemitismo estava no auge a fez internalizar uma sensação de inferioridade.
Apesar dos problema em casa, Edith tem Eric. Não era uma paixão qualquer. Era um amor em tempo de guerra. Conversavam sobre literatura e a Palestina. Desobedeciam o toque de recolher imposto aos judeus e iam ao cinema juntos. Sonhavam uma vida diferente.
Mas, mais do que tudo, havia um momento em que Edith se sentia realmente importante, forte, capaz e plena: quando dançava ballet. É na dança que ela sentia que tinha valor.
Depois da escola, ela praticava cinco horas de ballet no estúdio. Então, começava a fazer ginástica artística também, como algo complementar ao ballet. Edith também se apaixonou pela ginástica.
O contexto em que vivia, no entanto, era uma dura realidade. Certo dia, Edith é chamada por sua treinadora. A vaga da equipe de treinamento olímpico será destinada a outra pessoa. Edith não foi qualificada devido à sua origem judaica.
Levaria anos para Edith finalmente entender o que seu professor de ballet disse certa vez:
Editke, todo seu êxtase na vida virá de dentro de você.
Ele não poderia estar mais certo.
Auschwitz
Numa certa noite, soldados invadem sua casa. Com exceção de Klara, que está num Conservatório em Budapeste, Edith e toda sua família são enviados a uma fábrica de tijolos.
Depois de um mês trabalhando lá, o campo é esvaziado e Edith está prestes a partir, na carga de um caminhão. Ela ouve alguém chamar. É Eric. Ele diz: “nunca esquecerei seus olhos. Nunca esquecerei suas mãos“.
Com essas palavras, Edith cria na própria mente uma mensagem de esperança:
Se eu sobreviver hoje, amanhã serei livre.
Edith é enviada com a família a Auschwitz. E sobrevive.
Trauma
Não é preciso dizer que o período em Auschwitz foi traumático. Ainda na chegada no campo de extermínio, Edith e Magda, a irmã mais velha, são separadas da mãe por ninguém menos que Josef Mengele, o infame Anjo da Morte.
Nas palavras de Edith, Mengele era “um assassino refinado e amante das artes”. Certa noite, ele vai até o barracão onde estão Edith e sua irmã. Ele faz uma pergunta em alemão. Edith não entende, mas, antes que percebesse o que estava acontecendo, outras prisioneiras apontam para ela. Elas sabem que Edith foi bailarina e ginasta.
Mengele ordena:
Pequena dançarina, dance para mim.
Primeiro, ela entra em choque. Depois, se imagina na Ópera de Budapeste e dança O Danúbio Azul. Então, dança Romeu e Julieta.
Quando termina, Mengele lhe lança um pedaço de pão. Ela divide o pão com as companheiras de beliche. E agradece por estar viva.
Liberdade
Além de Auschwitz, Edith Eger sobreviveu também a outros trabalhos forçados. Depois de Auschwitz, foi enviada a uma tecelagem, depois a uma fábrica de munição e então a Mauthausen e à Marcha da Morte.
Mauthausen era um campo de concentração masculino onde os prisioneiros eram obrigados a cortar e carregar granito. Por se tratar de uma escada repleta de corpos, ficou conhecida como “os degraus da morte”.
A Marcha da Morte, por sua vez, era a caminhada de Mauthausen para Gunskirchen Lager, outro campo de concentração. A essa altura, Edith tinha a coluna quebrada e não conseguia mais andar. Mas, em algum momento, soldados americanos apareceram. Edith foi resgatada.
Cura
Embora toda a experiência de Edith como prisioneira tenha sido terrível, sua maior história de coragem e sobrevivência acontece depois do nazismo.
Edith está livre, mas é órfã. Ela recupera a saúde, casa-se, tem filhos, se muda para outro país. Mas, nada disso apaga seu passado. Acima de tudo, nada apaga sua culpa.
Até que, quando volta a estudar, um colega de classe lhe apresenta um livro: “Em busca do sentido“. O autor, Viktor Frankl, também era um sobrevivente da guerra.
Até então, Edith nunca quis falar sobre seu passado. Nem com seus filhos. Era doloroso demais. Porém, quando ela lê o livro de alguém com o mesmo trauma, encontra a coragem para enfrentar seu maior desafio: perdoar a si mesma.
Sobre a leitura
O material do livro é simples, despretensioso. Suficiente. Fonte confortável para ler, páginas amarelas. 23 capítulos separados em 4 partes, que estimulam a pausa para a absorção das palavras e a reflexão.
A capa apresenta uma imagem que, a meu ver, é bem escolhida: uma flor contornando um arame farpado. Uma mensagem sutil de que a beleza da vida pode existir mesmo onde também há dor.
A forma como Eger escreve é precisa e repleta de sensibilidade. O leitor é facilmente transportado ao passado, ao mundo de Eger. Além de enxergarnos o que está acontecendo, sentimos tudo à nossa volta.
No livro, acompanhamos cada etapa da vida de Edith Eger. O que me espantou foi que, mais do que me envolver, me identifiquei com Eger. Não sou sobrevivente do holocausto, nem sou órfã, não sou nem europeia. Mas, quando Eger relata como temia enfrentar a causa de seu sofrimento e as maneiras como se autossabotava para tentar fugir de seus próprios sentimentos, pensei muito sobre como eu mesma lido com minha própria vida. Esse é o poder desse livro.
Edith Eger se tornou uma renomada psicóloga. Em meio à descrição de sua própria história, Eger traz a história de alguns pacientes que atendeu.
O primeiro caso que Eger apresenta está nas primeiras páginas do livro. Ela descreve um paciente que está visivelmente transtornado, portando uma arma. Apenas depois de várias páginas, Eger retoma esse caso e conta o desfecho.
Um caso que achei emblemático, porém, foi o da paciente que sofria transtornos alimentares. Ela tinha anorexia. Eger sabia que o problema era muito mais profundo do que simplesmente a falta de comida. Na primeira sessão, soube que a adolescente era infeliz. Eger pediu para ela desenhar quando tinha sido feliz pela última vez. A adolescente desenhou a si mesma dançando ballet.
Ao mesmo tempo em que Eger tratava seus pacientes, também chegava mais perto da própria cura. No caso da menina com anorexia, Eger teve uma conexão e uma identificação imediata. No entanto, mesmo nos casos em que os pacientes não se pareciam tanto com ela à primeira vista, como o homem armado, Eger extraiu um aprendizado sobre seus próprios problemas.
Foi assim, ajudando a outras pessoas, que Edith Eva Eger tomou coragem, assumiu o risco e retornou a Auschwitz. E se curou.
Zimbardo tinha razão. Herói é, afinal de contas, um jeito especial de se enxergar. É a pessoa que tem a coragem de cuidar das próprias feridas. É aquela que permite aflorar seus sentimentos, identificar de onde eles vêm e se perdoa, para enfim, ser tornar responsável pela própria felicidade.
Essa valiosa lição, meus amigos, só pode ser totalmente compreendida com a leitura do livro todo. Recomendo.
Ficha técnica
Título: A Bailarina de Auschwitz
Título original: The Choice
Tradução: Débora Chavez
Editora: Sextante
Ano: 2019
Autora: Edith Eva Eger
Número de páginas: 304
ISBN: 9788543107240
Disponível em e-book